sexta-feira, 30 de setembro de 2016

A QUESTÃO CULTURAL

Há alguns anos, li esta crônica do Ziraldo e acho pertinente publicá-la nesse momento político pelo qual atravessamos. Confira:


A QUESTÃO CULTURAL
Ziraldo
(Estado de Minas - sexta-feira , 27/09/2002, Caderno EM Cultura, pág. 12)
Dando seguimento à minha viagem pelas palavras com as quais implico, aqui estou com uma palavra nova. Aliás, não implico com as palavras, implico - isto sim - é com o mau uso delas. Aquele negócio de não saber do que se está falando.

Vivo repetindo, e já devo ter dito aqui, que palavra não é grunhido, não é um som qualquer, inventado assim, sem mais nem menos. A palavra, quase sempre, contém nela mesma um universo de informação.

Se prestássemos mais atenção nelas, iríamos ver quanto economizaríamos de mal-entendidos, quanto ganharíamos na compreensão das coisas, como nos comunicaríamos melhor.

Isto, porém, é munição pra outro papo cabeça, vamos falar da palavra de hoje: cultura.

Ah, a cultura! Quanta bobagem se diz em seu nome.

Nesta eleição, então, tem candidato aí deitando e rolando.

O problema todo é que cultura é uma palavra de definição muito ampla. Ela vem do verbo latino colere, que significa, antes de tudo, colher. Nunca estou bem certo se a palavra primordial é o substantivo ou o verbo, se o que nasce primeiro é a coisa ou a ação que se refere a ela.

Em momentos de dúvida como este, tenho sempre a quem pedir socorro e um bom motivo para telefonar para os três maiores intelectuais da minha vasta família. Primeiro, o poeta, meu tio Ivo Barroso (tão jovem quanto eu, apesar de meu tio), que me ensinou tudo o que sei de literatura. Depois, o desembargador Silvio Teixeira Moreira, que se casou com minha irmã Santinha (passeando pela Europa, num congresso de juízes, ele se entendia com seus pares europeus, não em inglês ou esperanto, mas em latim) e, last but not least, o doutor Elson Pimentel (marido de outra minha irmã, Bebete) que, folgadamente, ocupo para as minhas dúvidas filosóficas já que ele, depois de uma longa carreira como físico nuclear, resolveu formar-se em filosofia, vocês aguentam?

Não queria contar pra ninguém, mas revelo o meu segredo: tudo o que digo aqui e que pode fazer-me parecer um homem culto é pura esperteza minha. Se não fossem eles...

Mas falando em culto, volto ao assunto. Estava justamente querendo entendera razão do amplo significado da palavra tema de hoje. E, depois de um tempão ao telefone com o jovem desembargador, decidimos que vamos pesquisar bastante para saber porque, do verbo latino colere, nasceu esta vasta palavra chamada cultura. Pelo que entendi, o particípio passado de colere é cultus, a, um, o que quer dizer "o que fez boa colheita'. Já cultura, culturus, a, um, é a forma passiva do futuro: "o que será cultivado". Que chegou até a língua portuguesa, contudo, como o nome do que se está cultivando.

Sílvio e eu nos prometemos - como já disse - que vamos aprofundar nossos estudos para descobrir os caminhos que esta palavra percorreu no tempo para representar para nós, hoje - a grosso modo - quatro coisas distintas: plantação, acúmulo de conhecimento, criação e criatividade de um povo (arte) e veneração (na forma culto e no verbo cultuar). No primeiro caso - plantação - cultura é o que será colhido (futuro). Tudo bem. No segundo caso, tendo colhido o que plantou, no sentido metafórico (retirar das fontes o fruto do conhecimento), o homem adquiriu cultura. Tomou-se culto. O quarto caso - cultuar, venerar - não nos interessa aqui. Fico, portanto, com o terceiro caso: o da "cultura" de um povo. Que é o que nos interessa neste momento em que vamos trocar de governo, na esperança de que chegue lá em cima alguém que entenda do riscado e se interesse por ele.

Já repeti aqui que os discursos dos candidatos, todos, sobre a questão cultural brasileira são, além de escassos, inteiramente equivocados. Nenhum deles tem uma resposta satisfatória porque nenhum deles está, realmente, preocupado com a questão.

Ora, o ser humano tem que respirar, tem que beber e comer, tem que defecar, tem que andar, tem que dormir e tem que se reproduzir.

Usando nossos cinco sentidos, estas são as nossas ações vitais. Organizado em sociedade, o ser humano tem que criar condições para que estas ações sejam satisfeitas. 

Para realizar essas ações, basta ao homem seu instinto de sobrevivência.

Ele não necessita qualquer auxílio da razão ou da inteligência para sobreviver.

Agora, por exemplo, quando cria odores para ter prazer em respirar; quando inventa o vinho ou descobre um modo especial de fazer sua comida;quando inventa um modo criativo de se locomover, quando descobre que pode dançar, cantar, pintar, reproduzir sua imagem; quando descobre que pode sonhar sem dormir, aí ele está fazendo cultura. Uma coisa que não é necessário ser feita para que ele não morra. Mas que lhe é fundamental! E necessária para que sua vida se aproxime mais de Deus, a sua maior criação.

Esta é a cultura que precisa ser entendida pelos governantes. Assim como eles sabem que têm que fazer estradas para que o homem se locomova, esgoto para que se livre de seus miasmas, hospitais para que suas excrescências não o matem; assim como os dirigentes sabem que têm que criar condições para que seus governados tenham formas objetivas de sobrevivência, eles têm que criar, também, condições - tão substantivas quanto - para que o homem realize sua cultura.

E isto porque esta cultura é tão importante para o ser humano quanto o ar que ele respira.

Quanto a esta cultura que é a aquisição de informações suficientes para fazer de cada um dos nossos cidadãos um homem culto - que compreenderia melhor este papo -, os governos têm estado,mal ou bem,aparelhados para resolver a questão.


Agora é hora de o presidente que viera nos governar entender que não adianta fazer uma escola para criar uma população culta se a outra cultura - a da criação - não tiver, no contexto, a mesma importância. Pra simplificar, não existe educação sem cultura. Não esta, aquela.