quarta-feira, 10 de novembro de 2010

CAUSO 01: O RETRATO DA JANELA



O RETRATO DA JANELA

Tadeu Oliveira

Chegou sorrateiro, espiando meio macambúzio pelas frestas dos olhos a algazarra no terreiro da casa. Pelos pés descalços, rachados e sujos de bosta de boi, via-se logo o seu jeito matuto de ser. Era um ser tão minúsculo e insignificante, que passou despercebido da atenção dos presentes, entretidos em posar de frente a uma máquina fotográfica que alguém segurava.
Se achegou devagarinho, postou pesados embornais e um saco de aniagem no chão, no que ouviu-se um cacarejo de frango, destampou a cabeça do chapéu puído e desvestiu-se do paletó de casimira encardida, na certa herdado de alguém. Passou a mão sobre os olhos, como a querer desanuviá-los e, vacilante, procurou pela dona da casa num espicho de olho, mas a vergonha era maior que a visão.
Tão logo deram conta da sua presença, alguém se aproximou com presteza: uma bela moça, indagando-o sobre o que desejava, o que fê-lo consumir-se no simplório da sua vergonha. Ensaiando um sorriso acanhado e jocoso, deixou realçar os cacos de dentes pretos e os sulcos nas faces chupadas, revelando o xadrez das rugas e o sofrimento do sertão dos gerais. Por um instante pensou em arrepender de encontrar-se ali. Com voz titubeante, quase um sibilo, perguntou pela comadre, prima em primeiro grau, que a consideração trazia-lhe em visita. A moça vistosa antecipou-lhe as honras da casa, revelando ser pessoa fina nos modos e nos tratos, que o deixou mais precavido. A beleza da moça aumentava o seu constrangimento, mas no seu íntimo, imperava um enorme desejo em saber de quem se tratava tão singela criatura.
Anunciado à comadre, esta veio ao encontro do primo abrindo-se em sorrisos e perguntando notícias dos seus. Colocando em dia a prosa, entremeada de respostas monossílabas do compadre, a dona da casa convidou-o a entrar, no que foi incisivo em negar, sob a alegação de que os pés estavam muitos sujos. A comadre insistiu e ele preferiu acomodar-se do lado de fora, enviesando a conversa pelo batente da janela da cozinha.
Servido o café com broa de fubá, foi a vez do visitante fazer agrados à comadre, entregando-lhe produtos agrários produzidos pela prole lá na sua glebinha de terra. Rapadura, queijo, polvilho, farinha de mandioca, beiju, além da encomenda especial de todas as vezes: um frango caipira.
Os agrados chamaram a atenção da moça grã-fina. Curiosidade despertada, como é do costume das pessoas da cidade, foi aí que o matuto veio a saber que se tratava da sobrinha do marido da comadre, oriunda de São Paulo e que há anos não se aventurava por aquelas paragens.
O homem, então, perguntou pelo regresso da moça para as terras paulista, prometendo que, antes da partida, traria um lote especial de iguarias para ela, o que o deixou mais à vontade fazendo com que a modéstia aos poucos escapulisse do seu controle.
Após algumas considerações a bela moça valeu-se de uma máquina fotográfica e pôs-se a registrar os produtos depositados sobre o fogão “de lenha”. Afinal, sempre que vinha visitar a parentela, fazia questão de coletar lembranças e traduzir em recordações nos pequenos quadrados de papel em preto e branco. Depois, fotografou a dona da casa guardando os agrados e o capiau foi ficando cada vez mais intrigado com tal engenhoca. A sua curiosidade levou-o a perguntar se era aquilo que fazia retratos e depois de minuciosas explicações, a moça retirou de uma bolsa uma maço de fotografias de diversas pessoas e lugares, passando à mão do matuto num gesto de simpatia. Deleitou-se, encantado com as fotografias.
Decorrido algum tempo, a linda moça convidou-o para tirar uma chapa com ela no que ele, encabulado, prontificou-se a atender. Após batida a fotografia, perscrutou o ambiente e num lampejo, adentrou-se pela casa a persignar-se, esquecendo-se da timidez e da sujeira dos pés, postando-se um tanto pilhérico, num misto de acocoramento e genuflexão, por detrás da janela da cozinha, estufou o peito raquítico e com voz embargada de alegria e emoção pediu para a formosa moça que tirasse um retrato dele naquela posição, entre o esquadrado da janela, “focando os peitos pra riba”, modo este que sinalizou com um gesto de mãos, pois há muito queria fazer seus documentos, mas nunca tinha surgido a possibilidade de conseguir um retrato três por quatro.

(Texto vencedor do 3.º lugar no Concurso Literário “Grandes Escritores de Minas Gerais”, promovido pela Litteris Editora – RJ e publicado no Livro de Antologias do referido concurso em 1999)

3 comentários:

  1. Grande Tadeu!
    Muito feliz em reler "O retrato da janela". Lembro-me bem quando li seu conto pela primeira vez, lá pros idos de 2002 quando tinha uns 13 ou 14 anos.
    Vamos marcar pra qualquer dia continuar nossas conversas sobre música, política e literatura.

    Um forte abraço.

    Douglas

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  2. Caro Douglas,

    foi justamente o Retrato da Janela a minha primeira incursão na literatura. Espero que vc também esteja exercitando os seus dons literários. E, quanto aos nossos bate-papos, é sempre um prazer tê-lo por aqui.

    Abraços Gerais!!!
    Inté, uai!!!

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  3. VALEU TADEU, LI O CASO DO RETRATO DA JANELA, VALE A PENA RELEMBRAR AS HISTÓRIAS QUE OUVIAMOS DE NOS FINAIS DE TARDE E DIAS CHUVOSOS, AGORA QUE CONSEGUI ME TORNAR UM SEGUIDOR, VOU LER TODOS OS CAUSOS E CONTOS.

    ABRAÇOS, CLOVINHO.

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