Morre aos 64 anos compositor, violeiro e cantor Dércio Marques, um dos mais destacados nomes da música brasileira de raiz. Artista realizou trabalhos em parceria com Elomar
Mineiro filho de uruguaio, Dércio Marques incorporou a música latino-americana em seu trabalho com a cultura popular Foto: Giselle Rocha/EM (22/11/99) |
Morreu na madrugada de ontem, aos 64 anos, o cantor e compositor Dércio Marques. Nascido em Uberlândia, no Triângulo Mineiro, ele estava internado há três semanas no Hospital Ana Nery, em Salvador, onde se recuperava da operação de retirada do pâncreas, vesícula e baço. Dércio foi um dos nomes mais marcantes da chamada música brasileira de raiz desde os anos 1970. Sua grande contribuição foi a incorporação da cultura latino-americana à música brasileira. Filho de uruguaio, Dércio fez o circuito universitário e independente de shows, com apresentações que sempre traziam canções de Violeta Parra e Atahualpa Yupanqui, entre outros nomes da música do continente.
Numa época marcada pela ideologização da música popular, sua arte antecipava outras reivindicações políticas, sobretudo as ligadas à ecologia e à valorização da diversidade da cultura nacional. Com a irmã, a também cantora e compositora Dorothy Marques, participou de vários projetos ligados às manifestações populares, como o congado e a folia de reis, além de oficinas para crianças e jovens em várias regiões do Brasil. No cenário da música alternativa ele era um dos mais independentes, sem fazer concessões em seus discos nem se render ao esquema dos meios de comunicação.
O nome de Dércio Marques está também ligado ao do compositor baiano Elomar, com quem manteve colaboração próxima, tendo participado de seus discos, gravado suas canções e defendido, em festival de televisão, a música Peão na amarração, num improvável cenário do Maracanãzinho lotado e atento à sofisticada canção composta em subdialeto da caatinga baiana.
O primeiro disco de Dércio Marques, Terra, vento, caminho, lançado em 1977 pelo selo Marcus Pereira, já consagrava o estilo pessoal do artista, com canções e poemas, influência da cultura latino-americana e registro de manifestações populares brasileiras pouco conhecidas do público urbano. Em 1979, lançou o disco Canto forte – Coro de primavera, trabalho de acentuado apelo coletivo, com participação de músicos de várias regiões brasileiras.
A pesquisa da cultura nacional trouxe para a arte de Dércio desde manifestações de cunho antropológico – com influência caipira, negra e indígena – como dos festejos tradicionais. O disco Fulejo é um exemplo de trabalho que mergulha no congado e nas toadas, suavizando a trajetória do artista, apontando nova frente expressiva. Nesse momento, Dércio estreita sua participação com outros artistas, como Diana Pequeno, Paulinho Pedra Azul, Pereira da Viola, Dani Lassalvia, Xangai e Carlos Pita, fortalecendo o grupo, que passa a se identificar com a música de raiz.
Canto e charango A arte de Dércio Marques tem como um de seus suportes o canto, atravessado pela tradição dos menestréis e seresteiros, mas que sempre incorpora a suavidade como forma de expressão. O timbre aveludado e o alcance de seu registro permitiam ainda o uso de vocalises e contracantos, sempre de bom gosto, que se tornaram marca registrada. Era um intérprete de natureza dramática, capaz de grande expressividade teatral. Como instrumentista, sua maior inspiração era o violão sofisticado de Elomar, mas soube incorporar outras sonoridades, como a do charango, e técnicas mais populares, próximas às modas de viola.
De sua discografia destacam-se ainda os trabalhos com a irmã Dorothy, como Monjolear, e os infantis, entre eles Anjos da Terra. Com Folias do Brasil, de 2000, Dércio Marques mostrou como as tradições das folias de reis e das festas do Divino têm origem ancestral na cultura portuguesa, que depois se espalham para várias regiões do Brasil, com destaque para Minas Gerais.
Seu último trabalho no palco foi a montagem mineira do Auto da Catingueira, de Elomar, com a participação do compositor, do Grupo Giramundo e dos cantadores Xangai e Saulo Laranjeira. O espetáculo apresentado no Palácio das Artes em abril do ano passado, dirigido por João das Neves, deve ser lançado em DVD ainda este ano. Em atuação tocante e discreta, Dércio confirmou sua posição de maior intérprete de Elomar.
Dércio Marques não teve seguidores ou fez parte de escolas. Seu estilo era muito pessoal, com marcas de sua origem e de suas andanças como músico e pesquisador. Sempre foi livre e independente. Na arte e na vida essas são qualidades difíceis de manter por muito tempo. Para Dércio parecia ser um caminho natural. Ele cantava como o vento.
DISCOS
•Terra, vento, caminho (1977)
•Canto forte – Coro da primavera (1979)
•Fulejo (1983)
•Segredos vegetais (1986)
•Anjos da Terra (1990)
•Espelho d'água (1993)
•Monjolear (1996)
•Cantigas de abraçar (1998)
•Cantos da Mata Atlântica (1999)
•Folias do Brasil (2000)
Fonte: Jornal Estado de Minas – Caderno EM Cultura – 28/06/2012