"Era o ponto de encontro para várias situações: a reunião após as aulas, o ajuntamento para as peladas, pescarias e os bailes no Clube Ferroviário,
a escuta de programas de rádio, as rodas de viola, cantorias e, claro,
serenatas regadas com muito vinho São Roque"
a escuta de programas de rádio, as rodas de viola, cantorias e, claro,
serenatas regadas com muito vinho São Roque"
Praça Raul Ribeiro Gorgulho, a pracinha Foto: Tadeu Oliveira |
Por Tadeu Oliveira
Lá pelos idos anos 70 e 80 do século XX, havia um grupo de amigos em Corinto que ficou conhecido como a Turma da Pracinha. Constituído por adolescentes de ambos os sexos, com faixa etária girando entre 15 e 18 anos, a maioria de nós morava no entorno e adjacências da Praça Raul Ribeiro Gorgulho ou simplesmente Pracinha. Tratá-la no diminutivo, muito mais que referir-se ao seu pequeno tamanho em comparação com as outras três praças centrais da cidade, era também um tratamento carinhoso por aquele espaço ajardinado.
Em
formato de triangulo retângulo, com área aproximada de noventa
metros quadrados com ângulos arredondados é produto do cruzamento
de três ruas: Expedicionários, cortada perpendicularmente pela
Risoleta Lima e ambas cortadas concorrentemente pela Benedito
Barbosa. Constitui-se de cinco canteiros, sendo um em cada vértice e
dois maiores no lado da hipotenusa e no cateto oposto de maior
medida com tamanhos proporcionais. Antes da recente reforma, possuía mais dois canteiros em
forma de círculo que circundavam os seus postes telecônicos em
curva dupla, um na parte mais larga e outro na parte mais estreita da
praça. Oito bancos de concreto distribuídos em simetria bilateral eram os suportes para a boa prosa e
as cantorias em qualquer hora do dia ou da noite ainda que em várias
ocasiões a polícia militar, em suas constantes rondas, nos
colocasse para dormir mais cedo. Era ainda o tempo da ditadura e de
seus excessivos controles.
Meus sobrinhos Patrícia, Marcelo e Clóvis na pracinha florida Foto: Acervo da Família Romão |
A
primeira geração a frequentá-la teve os meus manos Márcio, Berico
e Fernando, os vizinhos Élcio e Hélio de Ismael, Duca de Salatiel e
contou com nomes que fizeram história na música de Corinto:
Mauredson, que cantava no Corintian's Boys, Tino Barbosa, Chicão
de Paula, Zeínha e muitos outros. Essa turma fazia da pracinha o
ponto de encontro para rodas musicais e concentração para
serenatas. Enquanto eles cantavam, nós ainda com as calças curtas
brincávamos à sua volta de amarelinha, caiu no poço, rouba
bandeira, pegador de lata, bente-altas, par-a-par, mãe da rua, soltar
papagaio, “camone bói”(*). E
uma ou outra vez, algum casal arriscava namorar naquele pedaço de
paraíso.
À
medida que crescíamos, testemunhávamos as intervenções humanas em
volta da praça. Vieram o asfalto, as demolições e as novas
construções. A casa de “seu” Zé Três Metros deu lugar a um
enorme galpão que abrigou supermercado, banco e comércio de
exportações de cristais. A casa de Agripino e dona Flor deu lugar a
uma loja de tintas. A venda de “seu” Ismael abrigou o
supermercado da COBAL e a boutique de Lurdinha locomoveu-se pelos
diversos cômodos daquele prédio. A venda de Joaquim Camilo
transformou-se em açougue e depois num prédio de dois pavimentos. E
a venda de papai serviu de feira de verduras, oficina de bicicletas e
abrigou por muitos anos o bar do Luiz Meu Boi, o nosso “Empório
Brasileiro”. Aliás, a oficina de bicicletas do Washington, a
Ciclopeças Ferreira, ocupou em diferentes épocas as três esquinas
do cruzamento da Expedicionários com a Risoleta Lima. Nas redondezas
tinha também sacolão, a fábrica do picolé Sibéria, a sorveteria
de Clemente Ávila, a vendinha de “seu” Vani e dona Zilda, o bar
de dona Zezé e Joaquim Barbosa, a pensão Soares, local de inúmeras
festas, e as casas residenciais de alguns de nós. Até
igreja neopentecostal surgiu por ali.
Outra
prazerosa vizinhança da pracinha foi o conjunto musical Corintian's
Boys que ensaiava defronte minha casa. Assistir aos ensaios do
repertório nacional e internacional com Beto Negrete, Joãozinho,
Raimundo, Antônio, Odimar, Pedrinho de Alú, Goiaba e Niltinho não
tinha preço.
Nossa
cidade não herdou só o nome da metrópole grega. Herdou também a
ágora. Aliás, muitas ágoras porque,
se a Praça da Bandeira é o local das comemorações cívicas, a
Praça da Fonte Luminosa o local da paquera e também da
cultura, a Praça da Igreja o ponto dos aposentados da RFFSA, há
pelo menos mais umas seis praças espalhadas pela cidade. E elas
cumprem o mesmo fim da ágora grega que, em qualquer hora do
dia, é o lugar de encontro onde se passeia ao ar livre, onde se fica
sabendo das novidades, onde se discute política, onde se formam
opiniões. Porém, não com todos os requisitos para servir às
assembleias plenárias dos gregos e convocadas por um rei ou chefe da
aristocracia para proclamações aos guerreiros ou administração
da justiça. Não somente a ágora que serve de mercado aos
comerciantes e sua clientela, mas a praça pública onde se misturam
todos: transeuntes, curiosos e desocupados.
Foi
nesse território público que nós, meninos e meninas de uma
geração, vivemos momentos singulares. Ali naquele espaço dividimos
sonhos e segredos. Foi na pracinha que se despertaram os primeiros
amores. São tantas histórias vividas e perdidas nos porões das
memórias de quem as viveu que decerto mereciam estar num livro se
não tivesse outro lugar onde guardá-las.
Era o ponto de encontro para várias situações: a reunião após as aulas, o ajuntamento para as peladas, pescarias e os bailes no Clube Ferroviário, a escuta de programas de rádio, as rodas de viola, cantorias e, claro, serenatas regadas com muito vinho São Roque. Era lá que planejávamos os luaus na lagoa da Escola Agrícola, as galinhadas feitas com matéria prima subtraída dos nossos próprios quintais, as festas na Pensão Soares ou nas nossas próprias casas.
Era o ponto de encontro para várias situações: a reunião após as aulas, o ajuntamento para as peladas, pescarias e os bailes no Clube Ferroviário, a escuta de programas de rádio, as rodas de viola, cantorias e, claro, serenatas regadas com muito vinho São Roque. Era lá que planejávamos os luaus na lagoa da Escola Agrícola, as galinhadas feitas com matéria prima subtraída dos nossos próprios quintais, as festas na Pensão Soares ou nas nossas próprias casas.
Encontro de amigos na pracinha: Cica, Eliana, Tié, Gilberto e eu Foto: Acervo de Simone F. Cruz |
Muito
mais que um local de encontro, foi também um lugar de aprendizado.
Principalmente para mim, que sempre tive dificuldade de me enquadrar
nas diversas ondas surgentes. A convivência com vários desses
amigos ainda hoje me faz saborear o lado mais doce da vida.
Porém,
ela já não tem mais seus jardins floridos. Seus bancos não são
mais os mesmos. Recentemente reformada, não conta com o mesmo
glamour daquele tempo. No entanto, sempre que vou a Corinto faço
questão de passar por lá, sentar num banco qualquer e, se possível,
prosear com algum morador que resiste em viver no seu entorno.
(*)
Camone
bói: da frase “come on boy”,
pronunciada nos filmes de cowboy.