Por Affonso Romano de Sant'Anna
Primeiro esta observação quase estapafúrdia: as Olimpíadas derivam dos ritos funerários 700 anos antes de Cristo Parece um paradoxo: a excelsa celebração do corpo é um contraponto à decomposição do próprio corpo. É a vida vingando-se da morte. Todas as culturas têm ritos sofisticadíssimos para exorcizar a morte. Segundo um ditado antigo: os mortos governam os vivos. Segundo os maldosos: alguns governantes já morreram há muito, apenas se esqueceram de deitar o caixão.
Seja como for, a Olimpíada é o momento de esplendor da vida. É o momento em que o herói, por um instante, é imortal. Por isto, lhe conferem o ouro – o brilho, a perenidade, a glória. E nós assistimos a isso porque queremos ver a superação de nossas deficiências. Até os deficientes físicos têm sua Olimpíada. Eles, todos nós nos superamos por meio do outro.
Daí que as Olimpíadas sejam o momento em que os extremos se encontram, se chocam, se abismam e nos levam às alturas ou nos prostram aterrados. Ali está, por exemplo, aquela coreana lutadora de esgrima. Derrotada. Bastou um segundo para desgraçar-lhe quatro anos de preparação, destruir o sonho com o extasiante ouro olímpico. Ela está sentada com o florete abatido, inútil. Perplexa. A derrota a assombrou. Os juízes dizem que a oponente venceu, que ela tem que sair do pódio. Ela não sai. Fica ali 45 minutos. Destroçada. O estádio inteiro, as televisões do mundo inteiro de olho nela, esperando que assimile a derrota.
Ela tem razão, a derrota não é aceitável. Derrota é morte. E ela foi ali pela vida.
E ficamos divididos.
Se as Olimpíadas fossem só um festival de vitórias, seria um tédio. Onde a surpresa? O imprevisto? Onde o fracasso? O fracasso nos interessa, nos fascina. O fracasso nos torna novamente humanos.
Às vezes, por um instante, somos deuses. A chinesinha vem, dá aqueles saltos ornamentais fabulosos e temos certeza que ela é de borracha. Não é possível que um ser humano dê tantas piruetas e caia com a precisão de um objeto ou como se fosse uma figura projetada pelo computador. Estamos em êxtase.
Mas vem outra atleta. E parece que está tudo bem, e está. Por enquanto. De repente, ela dá um salto sobre aquela barra de 10 centímetros e se estabaca como um mamulengo. Tornou-se um ser humano falível, desprezível, irremediável. E temos pena dela. Temos pena de nós mesmos. Por um momento fomos deuses. E fracassamos.
As multidões vão aos estádios festivamente, mas estão à mercê desse paradoxo. Mesmo os que parecem olhar desatentos a televisão num bar ou restaurante estão de olho no acaso. Eles querem testar, no outro, seus próprios limites. Quando alguém bate um recorde, provou-me que posso ir além de mim mesmo. Quando alguém fracassa, ensinou-me que não sou deus, sou um reles mortal. Sou, como dizia Eça de Queirós, “um pobre homem de Póvoa de Varzim”, ou, como disse Fernando Pessoa, “não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada. À parte isto, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.
Dizem que na Grécia antiga havia quatro instituições que organizavam a vida social: a política, a religião, a poesia e o atletismo. E o herói que recebesse mais prêmios na Olimpíada merecia um poema de Píndaro. Certa vez um desses poemas foi eternizado em ouro no Templo de Minerva. Pois bem. Lá vem o Michael Phelps com o peito cheio de medalhas. O homem é ouro puro. Destronou uma russa que era campeã de vitórias e hoje é avó.
Digam-me: se perguntasse a ele, em plena pós-modernidade, se quer um poema, o que ele diria?
Fonte: Jornal Estado de Minas - Caderno EM Cultura - 05/08/2012