Por Fernando Brant(*)
Esse trabalho
desenvolvido por Odete Ernest Dias precisa ser melhor conhecido e avaliado. É
importante para que se tenha contato com a evolução da alma musical de Minas.
Os viajantes
Spix e Martius, no início do século 19, andaram por essas Minas Gerais e tudo o
que viram – em termos de humanidade, costumes, geografia, botânica, zoologia,
flora- eles descreveram em livros. É interessante o relato que fazem de um fato
ocorrido quando Martius esteve em Brejo dos Salgados, às margens do rio São
Francisco, para prestar assistência médica à esposa de um Capitão. Ali, depois
de cumprida a missão, ele assistiu a uma Festa da Rainha com missa, procissão e
um lauto regalo, arranjada por uma rica fazendeira das proximidades. Eis o
relato deles:
“Também
encontramos aqui entretenimentos musicais, isto onde menos podíamos esperá-los.
Um sertanejo, que habitava vinte léguas a oeste de Salgado, e casualmente tinha
ouvido falar de nossa prática de amadores de música, mandou um mensageiro, para
pedir-nos o prazer de tocar conosco um quarteto. Ao cabo de alguns dias,
apareceu o moreno Orfeu das selvas, à frente da mais estranha caravana. Às
costas da mula, trazia ele um rabecão, rabecas, trombetas, estantes para
música, e, como provas de sua dedicação, a mulher e os filhos. Dois de seus
vaqueiros tocaram as partes secundárias e, com jovial segurança, atacamos o
mais antigo quarteto de Pleyel. Que mais alto triunfo podia celebrar o mestre
do que a expressão de sua música ressoar aqui, no sertão americano? E, com
efeito, o gênio musical pairava sobre a nossa tentativa, e tu, excelente
melômano, João Raposo, viverás sempre na minha memória, com as tuas feições
animadas por triunfante enlevo”. ( J.B. von Spix e C.F.P. von Martius- 1818).
É do mesmo
naipe o narrado por George Garner ( 1836-1841): “Na primeira tarde, ao passear
pela vila fiquei surpreendido de ouvir tocar rabeca em quase todas as casas. É
a rabeca um instrumento usado exclusivamente pelos barbeiros no Rio e outras grandes
cidades: mas no interior é raro encontra-lo, porque a guitarra é muito
preferida tanto por homens como por mulheres. Em São Romão , porém, a moda
é diferente e a educação de uma moça não está completa senão quando sabe
manejar o arco”.
Depois das mulheres de São Romão, maestras na arte de tocar rabeca, houve o
tempo em que não havia casa de família ou sede de fazenda que não tivesse seu
piano. Coisa de gente de muita posse, que adquiria o instrumento na Europa, de
onde ele vinha de navio e, depois de muita estrada de terra, de dias e dias num
carro de boi ou carroça, chegava a grande maravilha que só os dedos finos e
leves da filha do dono tocariam.
A viola, já são
outras histórias. Que passam pelos desafios e pelo pacto com o demo. Que
ninguém confirma a existência, mas todos não desacreditam. Ainda mais que essa
é uma lenda que vem de longe, no tempo e no espaço, está em toda cultura que se
preze. Eu sei é que violeiro é que não falta nessas Minas Gerais. Para onde o
olho e o andar apontem, lá vem algum sujeito carregando sua ferramenta. Segundo
Luís da Câmara Cascudo, em
seu Dicionário do Folclore Brasileiro, foi o primeiro
instrumento de cordas que o português divulgou no Brasil. “ O século do
povoamento, o XVI, foi a época do esplendor da viola em Portugal, indispensável
nas romarias, arraiais e bailaricos, documentado em Gil Vicente e nos
cancioneiros. A orquestra típica das festas jesuíticas era a viola, o pandeiro,
o tamboril e a flauta.
Animador dos
bailes populares em todos os quadrantes brasileiros. Recebendo de Espanha o
violão, como a viola vulgarizada pelos mouros, o português denominou-o no
aumentativo de viola, instrumento-rei.”( Páginas 791 e 792 do citado
Dicionário). Sobre viola e violão é preconceituosa a visão do general Raimundo
José da Cunha Mato, em seu “ Itinerário, Minas Gerais a Goiás”: “todo vadio que
possui uma guitarra ( violão) tem seu pão ganho sem necessidade de trabalhar, e
encontra sempre quem o queira em casa.” Desde muito, e até hoje, tem gente que
continua acreditando e dizendo que a profissão de músico não é trabalho.
Na formação do
mineiro, a música é muitas vezes acompanhada pela religião. Assim, as músicas
cantadas em latim, o canto gregoriano, as datas solenes comemoradas pela Igreja
Católica marcaram profundamente a nossa identidade.
Outras festas
importantes, e essas mais diretamente influenciando o povo e contando com sua
participação efetiva, são as do Rosário, as Folias de Reis e toda essa gama de
momentos em que a população assume o que é dela. Os cantos, os ritmos, as
danças são resultado de uma mistura de cultura e povos.
A mistura de
tradições católicas com elementos místicos africanos encontrou aqui, nessa
farofa de cores e semblantes que somos, o lugar ideal para se solidificar. A
riqueza da música mineira vem daí; é do beber nessas tradições que está o
principal veio de nossa musicalidade. O resto vem das diferenças culturais das
diversas regiões, a intuição e a criatividade de cada um, o ouvido atento para
todos os sons, a mente aberta para o que houve e o que está vindo.
Minas gerais,
por ser o estado que mais tem fronteiras com outros estados, sempre influenciou
e foi influenciada por seus vários vizinhos. A química dessa constante
transfusão dá maior gás para a nossa cultura profunda e interior.
Faltou falar
das bandas de música que, ainda hoje, estão espalhadas pelo nosso torrão. As
cidades se orgulham de suas furiosas. Nascidas das corporações militares, logo
elas abriram o leque de suas apresentações e formação. Não há festividade
musical, seja de que origem for, que não tenha a sua presença. Além de alegrar
a população durante todo o ano, elas são formadoras de músicos profissionais.
Orquestras e conjuntos buscam ali seus componentes.
Num tempo não
tão distante, além de executar os dobrados, marchas e outras composições
alheias, seus maestros eram também autores. Muita partitura de qualidade deve
estar perdida por aí, nos porões das igrejas ou das sedes das corporações,
muito papel se queimou, se jogou no lixo ou foi comido por traças ou pelo
tempo. A maioria dessas agremiações foi mal preservada, pouco cuidada, mas elas
insistem e persistem, agregando novos músicos, alegrando novas crianças,
embalando as lembranças de todos nós.
E eu não poderia deixar de lembrar de outra tradição nossa, símbolo de nossa
afetividade e companheirismo, de nosso jeito lírico e boêmio de ser: as
serenatas, as serestas. As modinhas e canções, feitas e cantadas para as
namoradas, em noites de lua cheia ( ou noites de qualquer lua, o que vale
sempre é a intenção) ou nas homenagens sociais, são indeléveis e permanecem
vivas em inúmeras cidades de Minas. O jeito mineiro de cantar é o jeito mineiro
de amar.
Enfim, depois
de descrever tantos relatos de viajantes e pesquisadores que percorreram nosso
território e descobriram para nós a musicalidade mineira, a mineiridade
musical, eu me atrevo a reportar a emoção que tive ao assistir a um festival de
corais que anualmente se realiza em Belo Horizonte. É emocionante ver o povo mineiro
cantando a sua música. A cidade invadida, possuída pelo canto de brasileiros
vindos do interior, de fora de Minas e da Capital.Os corais tomam conta de
nossas praças e espalham harmonia, melodia e poesia pelas praças, ruas e
avenidas. O canto que bate em Beagá vem de lugares distantes; de Veredinha, por
exemplo. Mais de trinta crianças, a maioria meninas, colocam em estado de graça
o público que assiste ao som e ao gestual de sua apresentação. Não sei se vocês
sabem de Veredinha. É uma pequena cidade fincada no meio do vale do
Jequitinhonha, que tem Diamantina como porta de entrada e desfila povoações com
nomes singelos como Capelinha, Minas Novas, Turmalina e Carbonita.
Pois é de lá, do fundo mais fundo do vale, pobre materialmente e rico em
cultura, que o maestro Tadeu Oliveira traz o sublime cantar de suas meninas e
meninos. Ouvir Itamarandiba, minha e de Milton Nascimento, cantada e
interpretada por pequenos anjos negros, é de arrepiar.
O fazer musical na terra das montanhas, sertão e gerais guarda todo
este acervo. É com ele que os músicos, cantores e compositores mineiros de hoje
em dia contam no momento em que iniciam sua travessia. Com esta rica base, é só
acrescentar os conhecimentos novos, ouvir o que se faz nos outros mundos e
seguir a viagem de encantamento.
(*) Fernando Brant é Compositor e cronista
Fonte: Por Fernando Brant,
publicado em março de 2009 no site Música de Minas - http://www.musicademinas.com.br/informaximo/artigos/artigo.asp?id=2,
acesso em 22/07/2009.
Comentário: No dia em que me deparei com este artigo de Fernando Brant, não imaginava a surpresa que teria ao perceber que ele, ao terminá-lo, faz uma referência direta a mim e ao Coral Vozes das Veredas, de Veredinha-MG. A emoção que tomou conta de mim foi a mesma sentida naquele longínquo final do mês de novembro de 2004, quando pela primeira vez nós arriscamos participar de um festival de coral da envergadura do FIC.
Afinal, ser citado num artigo do mestre Fernando Brant ao relembrar um fato que aconteceu há pelo menos 05 anos antes, presumo que isso tenha sido marcante na vida dele tanto quanto foi marcante em nossa vida. Sem falar da grande honra de nos perfilarmos junto aos acontecimentos históricos da riquíssima música de Minas, na visão do autor.
Por tudo isso, deixo aqui os meus sinceros agradecimentos a Fernando Brant por sua generosidade e sensibilidade. Muito obrigado.
Tadeu Oliveira