Por Fernando Brant(*)
Músicos
brasileiros contemporâneos, chegando às nossas terras, costumam exclamar, de
tanto ouvir a qualidade e sutileza das melodias e harmonias que ouvem por aqui,
que Minas Gerais é “país da música”. Pode ser exagero, e é, se comparamos com
outros territórios, no mundo, conhecidos pela grandiosidade de sua produção
musical. Não queremos nos comparar aos grandes centros europeus de criação e
difusão de concertos, sinfonias e tais, concebidos através dos séculos de
cultura refinada. O velho mundo e sua bagagem são incomparáveis. Nossa idéia é
mais modesta e se refere, essencialmente, aos sons criados e executados pelo
nosso povo e que vêm desaguar no que conhecemos como música popular mineira e
brasileira. É algo que corre no sangue de nossa gente e está presente em todas
as situações de sua existência. O mineiro respira notas musicais e com elas
torna mais amena sua batalha pela vida ao longo da História.
O
conceito de música popular que hoje se reconhece não se confunde com o que se
chama de folclore. O primeiro tem autor determinado e o segundo é de autoria
coletiva ou desconhecida. Mas as duas são geradas no mesmo ventre, sua gênese
se encontra na alma da população que veio aportar em nosso território. As duas
vertentes, por terem a mesma origem, juntas, configuram o que pode ser
percebido pelo viajante de hoje da mesma forma que o compreenderam os
estrangeiros de ontem: a música, como ouro, corre nas veias de Minas Gerais.
Refletindo sobre o sentimento e a cultura dos mineiros, o poeta Affonso Ávila diz que “somos um povo festivo, extremamente criativo, temos uma visão sensual da vida, mas ao mesmo tempo somos recolhidos e conservadores do ponto de vista social e ideológico. É essa dualidade barroca, a meu ver, que caracteriza a chamada mineiridade” (ESTADO DE MINAS, caderno PENSAR, de 10 de março de 2007).
Essa
ambigüidade se encontra em tudo o que botamos a mão, em tudo o que o mineiro se
propõe fazer. É um andar com os pés bem firmes no chão e os olhos vislumbrando
os sonhos, os projetos, a distância, a criação. É conviver e ser o barro do
chão mas enxergar o mundo. Somos, os artistas mineiros, uma espécie de doido da
montanha, a viver o cotidiano do nosso lugar e a contemplar a Terra e os homens,
aqui do alto.Temos a alegria festeira, que se exprime em música nas cerimônias
sacras e nas profanas. Sabemos festejar, mas a primeira impressão que guardam
de nós é a de que somos tristes e macambúzios, fechados em melancolia, reza e
dor. Somos isso e muito mais.
De onde
vem esse jeito recatado e solene que é uma parte de nós? Virá da herança moura
que, entranhada por séculos na península ibérica, chegou a nós pelo nosso lado
português? Ou virá, também, do banzo que os negros trouxeram das terras africanas?
Em momentos diamantinos de delírio, no meio das pedras e da paisagem tijucana
que parece ter sido fundo de mar, inventei a hipótese de que os nossos pretos
eram, já na África, habitantes do interior. Por isso já traziam, de lá do outro
lado do Atlântico, a nostalgia do mar. Vindos do centro de um continente para o
meio de outro, sina redobrada, sofriam em dose dupla a falta de mar.
A música
que se faz em Minas Gerais é rica e diversificada. Não há uma maneira única de
Minas fazer canções, ela é plural em seus conhecimentos e criações. Minas são
muitas e muitos e variados são os mineiros. Os compositores surgem de todos os
Gerais e trazem do interior a memória dos antepassados, os cheiros das terras,
o sentimento amoroso das cidadezinhas plantadas entre vales, rios e montanhas.
A síntese que se realiza, na Capital montanhesa, lugar para onde se desloca a
maioria dos músicos, entre o rural e o urbano, o histórico e o contemporâneo,
faz a riqueza dessa arte particular e universal. Minas Gerais é fonte. Assim
como as águas brotamdo ventre das terras mineiras para formar os rios que vão
se dirigir ao mar, e este verter parece inesgotável, os sons jorram de todas as
latitudes de Minas.
É uma
variedade impressionante de jeitos de ritmar e harmonizar, de construir versos
e inaugurar temas. Chegam devagar, cautelosos, tímidos, silenciosos e cheios de
conteúdo. Basta a primeira oportunidade de mostrar o instrumento para que tomem
conta do pedaço. Vêm do oeste, do sul, no norte e do leste; da região central,
dos vales dos rios Jequitinhonha e Doce, da zona da Mata. Os dedos, os sopros,
as idéias que trazem são novidade, diferente do que já ouvimos mas, ao mesmo
tempo, têm uma identidade enorme com tudo o que aqui se faz. É um mistério
sempre presente no canto que se canta nas alterosas. Há uma identidade, a gente
sabe que este fazer só pode ter sido criado por essas bandas. Mas é diferente,
o que este faz é próprio dele, não é o mesmo que o cantar do outro.
Esta
constatação eu pude fazer ao longo do meu caminhar pela profissão de escritor
de canções. Eu me especializei em procurar palavras que se casem com canções.
Ouço a melodia, com o ritmo e a harmonia, e procuro descobrir o que aquela
beleza abstrata quer dizer. Os versos precisam se misturar amorosamente com os
sons. Não é apenas a questão de respeitar as tônicas e o número de
sílabas/notas. É necessário conhecer mais profundamente a alma da criação. Não
se escreverá uma letra alegre para uma melodia triste, e vice-versa.
O
primeiro passo é encontrar o mote, o que as pautas querem dizer. Nesta
empreitada tenho vários parceiros, muitos mineiros. A prova evidente de que
cada um, apesar de haver identidade entre eles, é um compositor original, com
digital própria, eu encontro em nossas canções. O trabalho de cada um não se
confunde. O resultado é que as letras que fiz e faço para Milton Nascimento são
absolutamente diversas das que faço para Tavinho Moura. O mesmo se aplica às
minhas parcerias com Toninho Horta, Wagner Tiso, Nelson Ângelo, Lô Borges, Beto
Guedes e outros. Para fazer isso, não tive que abrir mão de minhas idéias,
emoções ou princípios. Eu escrevi, sempre, o que me pareceu justo e se
enquadrava no que a canção me solicitava. Até porque eu também sou produto
dessa mistura maluca de mato e cidade, interior e metrópole, missa cantada e
cantigas de roda, rádio Nacional e viola na roça, quintal e mundo. E as
gerações novas, do centro ou do interior, continuam chegando com a bagagem
entulhada de coisas raras, de visões sonoras especiais. Parece um moto-contínuo,
cada um com suas novidades.
O fato é
que há um movimento constante, muito maior do que no tempo em que eu pus o pé
na estrada. Penso que o que fizemos e fazemos, incentiva a que mais gente
surja, aceite encarar a aventura, trazendo seu modo de tocar e criar, seu canto
seu discurso, seu recado.
Mas a
história de Minas com a música é antiga. Deve ter havido primeiro, o cantar
indígena, do povo que sempre morou por aqui. Os portugueses também tinham suas
cantigas, a lembrança de seus festejos coloridos, sua história. E os negros
vieram com uma contribuição extraordinária que marca a parte mais visível de
nossa identidade. Ainda hoje existem pessoas que contestam a força da cultura,
em Minas, no tempo da extração abundante de ouro. Tentam negar que onde a
economia é forte há poder e onde há riqueza é que a cultura mais se desenvolve.
A política maior está de braços dados com a cultura maior. Se havia a poesia
dos árcades, que inaugurava o movimento poético no Brasil; se havia a
biblioteca universal do padre Luiz Vieira; se havia Aleijadinho e sua escultura
e arquitetura; se havia o mestre Atayde: por que razão não existiria uma
política vigorosa, maior que uma simples manobra para não pagar impostos. Da
mesma forma, se havia tanta arte, haveria de existir uma música do mesmo
quilate.
É o que
se comprovou muito tempo depois, nos anos quarenta do século vinte, graças ao
trabalho de Curt Lang. Em seu artigo “La música em Minas Gerais: um informe
preliminar”, publicado em 1946, ele revelou a existência de uma escola de
compositores mineiros da época colonial. Aqui na música – como em Aleijadinho e
Atayde - surge o criador mineiro e mulato, na pessoa de Lobo de Mesquita. Ele e
outros, cujas obras foram encontradas, em sua maioria, nos arquivos do” Pão de
Santo Antônio”, em Diamantina, foram então reconhecidos como gigantes da arte
do povo mineiro. Com os músicos mineiros dos séculos 18 e 19 se restabeleceu a
verdade histórica: tinha que existir música de qualidade naqueles tempos.
No mesmo
“Pão de Santo Antônio”, uma outra musicóloga e pesquisadora, Odete Ernest Dias,
decobriria, alguns anos depois, partituras criadas pela gente de Diamantina, no
final do século 19. Músicas de cunho popular que os tijucanos compunham para
alegrar suas festas, divertir sua vida. Uma das peças recolhidas por Odete era
de autoria de um diamantinense ( pai de meu futuro professor de latim, José
Altimiras) que, além de compositor, era um competente cozinheiro. Para
comemorar a passagem do século 19 para o 20, ele preparou uma composição e um
jantar para os amigos, alguns também músicos. Para a peça musical, ele escreveu
partituras para todos os instrumentos necessários. E soltou a inventividade na
criação dos pratos do banquete. Certamente, iguarias com frango, porco, angu,
quiabo, ora pro nobis, doces e uma infinidade de quitutes da rica e
diversificada cozinha da região.
A mesma
dúvida que tivemos quando da chegada do século 21 eles tiveram em sua época. O
novo século começaria em 31 de dezembro de 1900 ou na mesma data de 1901? Na
dúvida, e como se tratava de diamantinenses que realçavam o lado festivo da
mineiridade, repetiram a festança no ano seguinte.
(*) Fernando Brant é Compositor e cronista
Fonte: Publicado em março de 2009 no site Música de Minas:
http://www.musicademinas.com.br/default.asp?pag=p999902,
acesso em 10/03/2009
Leia também: Música e mineiridade (2ª parte)
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