Da origem seresteira popular à riqueza harmônica com toques do barroco e do jazz, Minas Gerais criou uma escola própria de violão, que se destaca no cenário nacional
Geraldo Viana (*)
Toninho Horta, Chiquito Braga e
Juarez Moreira:
a música mineira sempre esteve em boas mãos
Foto: Fernando
Fiúza/Divulgação
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O violão representa, em nosso país, um pouco da alma brasileira. A origem exata dessa popularidade não se sabe. O que podemos afirmar é que ilustres músicos se renderam a esse e instrumento e que Minas Gerais tem hoje uma escola definida no cenário nacional e internacional.
Há várias vertentes que cultivam linguagens diferentes nesse instrumento. Desde o paulista Garoto (Aníbal Augusto Sardinha), com uma linguagem refinada e desafiadora unindo técnica e bom gosto, com propostas harmônicas arrojadas, até Baden Powell, um estilista que criou e eternizou os afros-sambas juntamente com Vinicius de Moraes.
Por sua vez, a escola erudita também nos presenteou com grandes violonistas do porte de Sérgio e Eduardo Abreu e o duo Assad (Sérgio e Odair), que representaram e representam o virtuosismo e a musicalidade brasileiros nos mais importantes teatros do mundo todo, com o glamour de estrelas.
Da escola popular, herdeira da tradição seresteira, com suas raízes na modinha e no fado, temos ainda Américo Jacomino (Canhoto), que compôs a célebre valsa Abismo de rosas, João Pernambuco, violonista vigoroso e compositor profícuo, autor de pérolas como Sons de carrilhões e Jongo (Interrogando), até chegar ao maior representante dessa escola, Dilermando Reis, que frequentou e abrilhantou as famosas serestas de Juscelino Kubitschek, em Diamantina. Nesse cenário, surge, em princípio timidamente, a escola mineira.
Mozart Bicalho se destacou por suas composições. Entre elas, a célebre valsa Gotas de lágrimas. Gravada e popularizada por Dilermando Reis, essa valsa já aponta para uma escola voltada para o apuro técnico, virtuosístico e para o sentimentalismo melódico no violão mineiro. Dessa linhagem fazem parte Nélson Piló, importante arranjador e professor de violão, e músicos violonistas como Sebastião Ildefonso e José Vieira, que iriam exercer importante papel na divulgação do violão com seus programas de rádio e gravações em LP.
Enquanto isso, já estava formado o embrião que culminaria no que hoje chamamos de harmonia mineira. Também de origem incerta, dando margem para muita especulação, a música composta em Minas Gerais assumiria um papel fundamental na chamada música elaborada, com ares de “impressionismo tardio”.
Segundo relatos do violonista José Pascoal Guimarães, colecionador e dono de um grande acervo do violão, conclui-se que a origem e o desenvolvimento desse nosso talento remonta à primeira metade do século 20. Naquela época, frequentavam Minas Gerais o músico Garoto e Radamés Gnatalli, em visitas a Pedro Quintão, casado com uma irmã de Chico Xavier.
José Pascoal conta que eram comuns as idas desse grupo de amigos à cidade de Pedro Leopoldo visitar Chico Xavier. Segundo ele, o violonista Garoto não abandonava seu amigo violão em hipótese alguma e mesmo durante a viagem, por estradas de terra em péssimas condições, o violonista exercitava suas habilidades de instrumentista e compositor.
Nos fins de semana, hospedado na casa de Pedro Quintão, em Belo Horizonte, nas tardes de domingo, Garoto, com seu violão modelo Dinâmico e com o auxílio de alto-falantes montados na porta da casa do amigo, lotava uma rua do Bairro Sagrada Família com crianças, adultos, idosos e casais de namorados, além de estudiosos do violão, que assistiam e aplaudiam o virtuoso instrumentista. Daí a suposição do êxtase experimentado pelo público ao ouvir peças tão modernas como Jorge do Fusa e Tristezas de um violão entre as hoje populares Gente humilde e Naqueles velhos tempos.
Influência do jazz Coincidência ou não, alguns anos depois, um grupo formado por jovens músicos, nas horas dançantes de fins de semana, no Bairro Horto, experimentava os acordes do jazz, sob a influência da audição de grandes orquestras e da música de Debussy e Ravel. Segundo Chiquito Braga, um dos frequentadores, eram comuns as idas à casa do contrabaixista Paulo Horta, onde tocavam e ouviam discos dos grandes músicos da época.
Nessas reuniões já havia um “garoto” que com olhar tímido e ouvido atento se ligava nas modernidades e riscos que os verdadeiros criadores buscam. Seu nome era Toninho Horta. Chiquito Braga lembra que Toninho, ainda garoto, talvez somente observando, já tenha delineado ou vislumbrado um caminho para a estilística que iria desenvolver, por meio de muito estudo e dedicação, nos próximos anos.
Nessa vertente, a fusão da religiosidade do barroco mineiro com a sofisticação harmônica produziu músicos do quilate de Juarez Moreira, que, fiel à tradição violonística, desenvolve importante trabalho de composição na música instrumental, sendo considerado um dos mais importantes estilistas de nosso tempo. Seguidores dessa tradição, violonistas como Gilvan de Oliveira, Weber Lopes, os irmãos Beto e Wilson Lopes, entre outros, dão continuidade a essa corrente, que a cada instante ganha novos adeptos. Todos voltados para a criação e continuação da música que se notabilizou pelo apuro técnico a serviço da sofisticação.
No campo didático, tivemos importantes violonistas professores, como José Lucena, responsável pela primeira cadeira de violão em uma universidade (UFMG), hoje muito bem representada pelo violonista Fernando Araújo, e violonistas experimentadores, como Teodomiro Goulart. que, com grande arrojo, desenvolveu um importante sistema de ensino do instrumento e da música, tornando-se, também como compositor, uma referência para o repertório moderno do instrumento.
As influências foram se desdobrando e sendo passadas como herança de uns para os outros. Com isso foi cultivado em nosso meio uma espécie de inquietude que dá à música mineira uma qualidade ímpar embasada pela irreverência e, sobretudo, pelo alheamento aos modismos e à música de entretenimento praticada por gravadoras do eixo Rio – São Paulo.
Violonistas como Aliéksey Vianna, Tabajara Belo, Humberto Junqueira, Thiago Delegado, Lucas Telles, Frederico Hermann, Guilherme Koeppel, Ronaldo Cadeu, Guilherme Vincens, Sílvio Carlos e Carlos Walter, entre outros tantos, garantem um futuro produtivo e criativo para o violão em Minas Gerais.
De suas cordas e da fusão de estilos podemos ouvir e perpetuar os ecos do passado, quando se podia ouvir um violão com harmonias arrojadas que brotavam das ruas e janelas da Sagrada Família e do Horto, em Belo Horizonte, e encantavam as serestas mineiras.
(*)Geraldo Viana é violonista e compositor.
Fonte: Publicado no Caderno Pensar, Jornal Estado de Minas, do dia 29/06/2013.