DESVELO
Por Tadeu Oliveira
O menino brinca no fundo do quintal envolto num mundo de
sonhos, fantasias e mistérios...
Manguinhas
verdes encravadas de pequenos gravetos formam a sua manada, que aboia pelas
trilhas riscadas entre montinhos de mato e terra perto da horta infestada de
borboletas a ziguezaguearem seus matizes. O buraquinho d’água, calçado com
pedrinhas multicores serve-lhe como lago para o rebanho refrescar. Caixas de sapato vazias são casinhas de personagens moldados em barro. Vez em quando galos, galinhas e ninhadas de pintainhos aproximam-se do território trazendo
perigo ao lugar.
Agora
está a empunhar possante espingarda confeccionada com a haste que sustenta a folha do mamoeiro. Montado no cabo da vassoura, transformada em alazão, luta contra
inimigos saídos do seu fértil imaginário infantil, interpretando os heróis dos
gibis de faroeste colecionados pelo irmão.
Assim são os dias do menino. O quintal é o espaço lúdico a embalar sonhos de moleque. Conforme a época do ano, vai-se transformando na arena livre onde vivencia experiências do que se vê, do que se comemora, do que se apreende. Lá é o seu mundo, onde é dono e senhor. É o rei que vence todas as batalhas imagináveis e inimagináveis. É o herói solitário no espaço restrito do terreiro, ora transformado em densa floresta onde é o caçador a derrotar sua presa, ora transformado num estádio de futebol onde subjuga adversários em homéricas vitórias. O quintal é tudo: fazenda, rio, castelo, ringue, picadeiro, estádio, estrada...
A
tristeza só o incomoda quando vê a desarmonia dos seus simples brinquedos com brinquedos dos outros meninos. Na porta da rua, vendo-os brincar na
calçada, sente as desigualdades impostas pelo mundo. Por que, enquanto brinca com seus rústicos brinquedos, construídos muitas vezes por suas
próprias mãos, os outros brincam com carros à pilha, bolas de couro, aviões que
voam de verdade e tantas outras modernas excentricidades? A resposta mantém-se
incógnita aos anseios infantis. O imponderável queima-lhe os recônditos da sua
inocência. Interroga a mãe, sem resposta plausível para explicar-lhe as
complexidades do mundo. O seu mundo é o das brincadeiras, o da mãe é só o
esfregar de trouxas e mais trouxas de roupas para fora, garantindo o sustento
do lar. Não bastasse as desproporções materiais, sofre na pele o preconceito da
cor e da ilegitimidade paterna. Filho sem pai, filho da miséria, futuro
marginal. O ferro do preconceito a predestinar-lhe o futuro. Que importam os
valores? Vale-se pelo que se possui, não pelo que se é.
Dia
desses, o menino, cumprindo obrigação rotineira a nutrir-lhe o senso da
responsabilidade, vai buscar o leite em casa de fornecedor, fazendeiro rico e
pai de dois filhos que regulam a sua idade. Descobre, enquanto aguarda pelo
atendimento, diversos brinquedos dos meninos abastados esparramados pela
varanda. Olha um, aprecia outro, mexe daqui, remexe acolá, quando percebe, num
canto, uma minúscula latinha de talco. Em meio a tantos brinquedos, justo
aquela miniatura desperta-lhe a atenção. Tamanho é o enlevo que não percebe a
empregada a roubar-lhe o sonho de posse. Vai-se com o leite, embebido no
lirismo dos desejos. Se pudesse ter uma coisinha como aquela, para perfumar-se
a caminho da escola, fazendo companhia à cheirosa filha do comerciante da
esquina? Se levar consigo, no meio de tanta quinquilharias, ninguém dará por
falta.
O
plano é executado no dia seguinte. E o põe em prática assim que chega. Antes de
chamar pela empregada, enfia calçãozinho adentro o pequenino objeto. Toma o
rumo de casa, mais feliz impossível. Só não contava que a felicidade lhe seria
tão efêmera. A mãe percebe o pequeno objeto, inquire-o a respeito e ele tenta
safar-se. Aperta o interrogatório e o menino confessa. Onde já se viu, filho
meu, apropriar-se de coisas alheias? Que vá imediatamente repor ao devido
lugar o que não lhe pertence. O menino chora, implora à mãe que ameaça
surrá-lo. Como devolver agora? Deixasse para o outro dia quando a vergonha
será menor, implora o menino em copioso pranto. Contanto que prometa nunca mais
agir daquela forma, a mãe prorroga-lhe a devolução com um afago nos cabelos.
Dia
seguinte, lá vai o menino cumprir a rotina levando dentro do calção um
pedacinho do seu sonho. Enquanto a empregada aparece, balbucia um comentário
qualquer sobre o sedutor objeto envolto nas mãos pequeninas. Entrega-lhe a
latinha de talco, recebendo de volta a vasilha do leite. Dá meia volta com os
olhinhos em lágrimas.
A
pobreza e limitações agora estão acrescidas pela ética da vida. Preconceito
algum apagará da memória o conhecimento dos limites da propriedade nem
subtrairá do caráter as diferenças todas, impostas pela vida.
O
menino brinca no fundo do quintal envolto num mundo de realidades e
revelações...