Belo Horizonte vista do alto: você se sente em casa nesta cidade? |
João
Paulo
O recente resultado
da eleição para a Presidência da França, com a vitória de Hollande, mostrou,
entre outras coisas, que há um ideal de insatisfação com os consensos
pessimistas em relação à política e à administração pública. Independentemente
dos méritos do novo presidente, a noção de uma certa inevitabilidade da
condução conservadora em razão das crises – como se fosse sempre melhor manter
que modificar (ou modificar para manter), que é o cerne do conservadorismo – se
mostrou incapaz de mobilizar a maioria dos franceses. O retorno às propostas
socialistas, desta vez atravessadas pela ideia de crescimento, é prova que
existe um potencial de politização ainda a ser resgatado.
Nas últimas décadas, numa reação que respondia à desmobilização individualista
da pós-modernidade, os projetos coletivos entraram em coma induzido. A
ideologia foi trocada pelas técnicas de administração e as utopias deram lugar
ao fim da história. A tradução em termos políticos foi a superação das chamadas
“grandes narrativas” em favor de uma lógica da condução dos negócios públicos,
quase sempre a partir da inspiração do mercado. A política entrou em baixa para
ser substituída por uma visão pragmática tanto em termos administrativos (como
se tudo fosse uma questão técnica) como de poder (em vez do debate em torno de
propostas, o jogo das alianças para conquistar e manter posições).
Não é um acaso ou escolha semântica, por exemplo, o nome dado ao novo
locus do Poder Executivo em
Minas Gerais : Cidade Administrativa. A concepção de um espaço
esvaziado de discussão política em nome da racionalidade técnica é um ideal
inalcançável – e inviável. Assumir que a cidadela do Bairro Serra Verde é
política deveria ser um mérito, não um negaceio de seu destino. Política é algo
importante demais para ficar na mão de burocratas. Ao retirar o sítio da
política dos interstícios da cidade, o que se comprova, além de sua ineficácia,
é que precisamos recuperar nosso destino de animais políticos, sob o risco de
nos tornarmos apenas animais.
O desafio que se aproxima para a cidadania brasileira é a eleição de
prefeitos. É um dos momentos privilegiados para voltar a fazer política. No
entanto, o que se acompanha em Belo Horizonte – e não é muito diferente da
maioria das cidades – é uma inversão de foco. O que deveria alimentar as
discussões são as diferentes opções para a condução dos vários campos que
compõem a vida da cidade. No entanto, o que se observa são debates sempre
marcados pela sopa de letrinhas das siglas partidárias, pela viabilidade
eleitoral de nomes carimbados, pelas alianças estratégicas (em nome de votos,
não de projetos), pela capacidade de financiamento das campanhas. Ficam de fora
as propostas para a cidade. Fica de fora a política.
Em 1989, na primeira disputa eleitoral direta para a presidência depois
da ditadura militar, uma peça publicitária da campanha do candidato Lula foi um
símbolo do que se perdeu. O candidato mostrava uma sala onde várias pessoas
reunidas pareciam elaborar um plano de governo. Lula então apresentava as
pessoas e dizia que eram os responsáveis pelas propostas nas áreas de saúde,
educação, cultura, habitação, segurança etc. O que a imagem afirmava é que
havia um projeto coletivo de mudança, que vinha sendo gestado havia muito tempo
pela inteligência brasileira (alguns rostos eram reconhecíveis), que se
propunha a disputar a hegemonia com o projeto vigente de poder da sociedade
brasileira.
Aquela propaganda, com todos os desvios morais que a publicidade
envolve, deixava entrever que havia pelo menos dois projetos na arena. Que
existia uma forma de pensar a saúde e a educação, por exemplo, que era
completamente diferente do que se fazia então. Não se tratava apenas de quem
chegaria ao poder, mas que políticas públicas seriam exercidas em nome do poder
conferido precariamente aos novos governantes. Se eles fracassassem em seus
propósitos, além da oposição popular durante o governo, seriam afastados do
poder no pleito seguinte.
Há uma política de saúde privatista, concentradora em termos de atenção,
individualista, cara e discriminadora; há uma política de saúde pública,
descentralizada, universal e inclusiva. Há uma educação pública que atende às
exigências de mercado, que julga, exclui, reprova e emite visões de mundo
competitivas e discriminadoras. Há uma educação pública que responde por
valores humanos e democráticos, que insere, valoriza as diferenças e amplia o
debate entre pessoas livres. E por aí vai. Para cada setor da vida humana, em
sua tradução política, há formas diferenciadas de exercer o poder do Estado.
Cada um dos lados tem seus formuladores, seus seguidores e defensores. A
eleição deveria ser o momento em que essas ideias deixam a arena exclusiva do
saber técnico para ganhar dimensão política.
Sem
humanismo
Os exemplos da saúde e educação não são gratuitos. As duas mais
importantes áreas sociais são campos de batalha de visões de mundo. Na área da
saúde, a criação e implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) vem mostrando
que há uma oposição poderosa, liderada pelo setor privado e pelos detentores da
tecnologia para solapar as bases solidárias e modernas do sistema público de
saúde. Em alguns setores, avanços inegáveis como a humanização do atendimento
ao portador de sofrimento mental, são hoje questionados em nome da retomada do
asilamento e do uso intensivo de medicamentos. Hoje, a internação e até o uso
do eletrochoque vêm sendo defendidos abertamente, num atentado não apenas ao
saber como à memória de um passado de horror. Ficou para saúde pública apenas o
que não dá lucro. “Louco” dá lucro: fica muito tempo internado e o remédio é
caro: para o mercado, o melhor dos dois mundos.
No campo da educação, as políticas de inclusão e equidade, como as cotas
e a quebra da obrigatoriedade do boletim e da reprovação, todos eles signos de
humanização, também sofrem hoje uma saraivada de críticas, quase sempre de
fundo autoritário. Com isso, corre-se o risco de se perder um trabalho de
fixação dos jovens à escola, em nome de uma competição desabrida, que se
esconde sob o álibi da meritocracia. Em vez de ser lugar de inclusão e da
diminuição das desigualdades artificiais (ou alguém acha que os “ricos” são
mais inteligentes?), a escola passa a ser arena de julgamento e separação de
habilidades valorizadas socialmente, quase sempre de acordo com as regras do
mercado. Por isso as crianças hoje não falam mais em vocação, mas em melhores
oportunidades de emprego e salários. Ninguém quer ser astronauta ou bailarina,
os meninos querem ser Neymar e Eike Batista.
Belo Horizonte vem perdendo nos últimos anos alguns avanços que foram
construídos coletivamente, como os citados acima. Passou a patrol sobre o SUS e
a Escola Plural. Além disso, outras práticas administrativas e políticas foram
sendo esvaziadas até perder a efetividade. É o caso do Orçamento Participativo,
hoje uma sombra do que representou, que sobrevive como migalha, mais para
efeito de marketing (o risco da desativação) do que de correção de rumo dos
investimentos definidos de forma centralizada. Outro déficit democrático é
vivenciado nos conselhos, que deixaram de ter participação expressiva e foram
sucateados e desrespeitados, como se viu na posse do Conselho Municipal de
Cultura. A democracia não acaba na eleição, precisa começar por ela.
O que se vê hoje, ano de eleição, é um debate em torno de nomes e
partidos. A cidade hoje é muito mais que uma instância de poder. No contexto
contemporâneo, ela é o lugar que precisa recuperar a dimensão da convivência
com as exigências postas pela diferença. Se há um lugar em que a
individualidade toca a coletividade é exatamente na cidade. O separatismo do
mercado e as usanças do egoísmo podem nos levar à paralisação. O nó que o
trânsito arma a cada fim de tarde deixou de ser uma metáfora para ser uma
ameaça real. O que isso tem a ver com eleição? Tudo.
jpaulocunha.mg@ diariosassociados.com.br
Fonte: Coluna Olhar - Caderno Pensar - Jornal Estado de Minas, Publicação: 12/05/2012