João Paulo(*)
Foto: Beto Magalhaes/EM/D.A Press |
Há notícias que chocam, dos acidentes evitáveis aos desastres da natureza, com sua consequência de destruição e perdas de vidas. Há ainda informações que entristecem, como a comemoração da execução do inimigo, a invasão violenta de países em nome do combate às ditaduras, as guerras feitas a cada dia para acabar com todas as guerras. Existem até mesmo eventos que nos levam a descrer dos valores que cimentam a vida em sociedade, como a miséria concentrada em classes e nações, como se se tratasse de um destino inexorável; e a corrupção que rouba de todos para enriquecer seres moralmente desprezíveis. Mas há o pior: Belo Horizonte recebeu esta semana a comprovação de que vivemos em conúbio com monstros. Moradores de rua tiveram sua dose de cachaça batizada com veneno. O grau de hediondez da tentativa de assassinato é de causar horror.
Não estamos em guerra, os pobres não são inimigos, o direito de matar não faz parte de nosso patrimônio de liberdade. O que se fez aos moradores de rua é um crime que em sua desfaçatez, covardia e inusitado senso de justiçamento cria uma separação entre pessoas e monstros. O mais grave de tudo isso é o viés nitidamente classista do episódio: pessoas que se incomodam com a miséria – não pela injustiça que é existir miseráveis em um país cheio de riquezas – resolvem que a forma de acabar com seu desconforto (que é conviver com os moradores de rua) é matar os miseráveis. O desejo de genocídio explícito revela o que de pior as cidades carregam em seus ventres: o germe do ódio.
Mas a situação, que envolve aspectos racistas, se torna ainda mais exemplar de nosso despreparo moral quando a busca de entendimento se volta para as vítimas, não para os assassinos. O debate que se seguiu à vergonhosa atitude dos “cidadãos” ou seus serviçais esteve mais marcado pelo problema causado pelos moradores de rua do que pela busca dos culpados de um ato de extrema violência. Em vez de procurar os carrascos, foram julgadas as vítimas. A indignação foi substituída pela operação racional de melhorar as condições dos abrigos, de oferecer mais condições de vida aos moradores de rua, de criminalizar suas atitudes ou de julgá-los moralmente como vadios, preguiçosos ou arruaceiros.
Distribuição Numa sociedade marcada pela divisão, o maior crime é sempre a explicitação da injustiça. Assim, pior que matar homens e mulheres pelo simples fato de morarem nas ruas e incomodarem as pessoas “produtivas” é ser desocupado, mau cheiroso, bêbado e arruaceiro. A vida é atributo de alguns capazes de cumprirem as determinações da cultura hegemônica. Para os outros, a morte. Não foi outra a lógica exercida na Alemanha nazista, que demonizava origens, religiões, comportamentos (de ordem sexual) e atitudes. Os judeus, homossexuais e ciganos mereciam morrer. Cumprir esse projeto era atributo da civilização que se queria erigir. Não se tratava de decisão ética, mas de eficácia industrial. Uma fábrica de morte.
O que se fez com os moradores de rua de Belo Horizonte talvez tenha sido ainda mais grave: o preconceito foi mais torpe, já que, possivelmente, partia exatamente de quem criou as raízes para desigualdade social que alijou as vítimas da convivência social. Sem qualquer carga ideológica, a pobreza só se explica pela riqueza, o que faz lembrar uma observação do pensador católico inglês Gilbert Keith Chesterton no início do século 20: a propriedade é como a merda, só é boa quando espalhada. Chesterton, que não tinha nada de socialista, defendia um sistema que chamava de distributivismo. Para ele, o homem sem nada é tudo, menos homem.
Outro inglês, igualmente inquestionável em seus propósitos, o religioso Charles Dogdson, mais conhecido como Lewis Carrol, decifrou a operação que sustenta o preconceito ao narrar o julgamento de Alice pela Rainha de Copas: primeiro a sentença, depois o julgamento. Geralmente é o que fazemos o tempo todo, primeiro julgamos (“cortem-lhe a cabeça”), depois convocamos o julgamento para justificar nossas ações. A ciência, o direito, a moral, a psicologia e até a religião são apenas álibis morais utilizados para diminuir as culpas. A diferença começa quando a ordem de cortar a cabeça (ou envenenar moradores de rua) deixa de ser metafórica e se torna real.
Ato e aceitação O que ocorreu em Belo Horizonte esta semana é grave demais para ser resolvido com uma simples avaliação dos programas de assistência social. Os moradores de rua não vão deixar as portas das casas de classe média porque os abrigos são confortáveis e a comida boa. Sua opção pela rua tem outras raízes e precisa ser compreendida de forma mais profunda. Independentemente disso, o incômodo causado não pode ser interpretado como uma falência do setor público de amparo, que daria aos cidadãos o direito de fazer “justiça” com as próprias mãos.
Chegamos ao mais fundo do fundo do poço. E o pior: na hora de dar conta de nossos defeitos de alma e sociedade, passamos a culpar a diferença em razão de seu potencial de incômodo. Os moradores de rua são o signo de nossa incompetência para dar conta da injustiça social. Acabar com eles não torna a sociedade mais justa nem mais humana. Nosso problema não são os abrigos, mas o que abrigamos em nós. O atentado aos moradores de rua, com seu simbolismo boçal em fazer da bebida a arma, é um dos mais tristes capítulos da história recente da cidade. Só não foi maior que o descaso que se seguiu.
Matar é ruim, aceitar o assassinato por razões de higiene social é ainda mais daninho. Podemos até ter certeza de que não participaremos da primeira operação, mas o risco de conviver pacificamente com a segunda parece nos rondar como um espectro. Quando isso acontecer, já teremos deixado de ser gente.
Não estamos em guerra, os pobres não são inimigos, o direito de matar não faz parte de nosso patrimônio de liberdade. O que se fez aos moradores de rua é um crime que em sua desfaçatez, covardia e inusitado senso de justiçamento cria uma separação entre pessoas e monstros. O mais grave de tudo isso é o viés nitidamente classista do episódio: pessoas que se incomodam com a miséria – não pela injustiça que é existir miseráveis em um país cheio de riquezas – resolvem que a forma de acabar com seu desconforto (que é conviver com os moradores de rua) é matar os miseráveis. O desejo de genocídio explícito revela o que de pior as cidades carregam em seus ventres: o germe do ódio.
Mas a situação, que envolve aspectos racistas, se torna ainda mais exemplar de nosso despreparo moral quando a busca de entendimento se volta para as vítimas, não para os assassinos. O debate que se seguiu à vergonhosa atitude dos “cidadãos” ou seus serviçais esteve mais marcado pelo problema causado pelos moradores de rua do que pela busca dos culpados de um ato de extrema violência. Em vez de procurar os carrascos, foram julgadas as vítimas. A indignação foi substituída pela operação racional de melhorar as condições dos abrigos, de oferecer mais condições de vida aos moradores de rua, de criminalizar suas atitudes ou de julgá-los moralmente como vadios, preguiçosos ou arruaceiros.
Distribuição Numa sociedade marcada pela divisão, o maior crime é sempre a explicitação da injustiça. Assim, pior que matar homens e mulheres pelo simples fato de morarem nas ruas e incomodarem as pessoas “produtivas” é ser desocupado, mau cheiroso, bêbado e arruaceiro. A vida é atributo de alguns capazes de cumprirem as determinações da cultura hegemônica. Para os outros, a morte. Não foi outra a lógica exercida na Alemanha nazista, que demonizava origens, religiões, comportamentos (de ordem sexual) e atitudes. Os judeus, homossexuais e ciganos mereciam morrer. Cumprir esse projeto era atributo da civilização que se queria erigir. Não se tratava de decisão ética, mas de eficácia industrial. Uma fábrica de morte.
O que se fez com os moradores de rua de Belo Horizonte talvez tenha sido ainda mais grave: o preconceito foi mais torpe, já que, possivelmente, partia exatamente de quem criou as raízes para desigualdade social que alijou as vítimas da convivência social. Sem qualquer carga ideológica, a pobreza só se explica pela riqueza, o que faz lembrar uma observação do pensador católico inglês Gilbert Keith Chesterton no início do século 20: a propriedade é como a merda, só é boa quando espalhada. Chesterton, que não tinha nada de socialista, defendia um sistema que chamava de distributivismo. Para ele, o homem sem nada é tudo, menos homem.
Outro inglês, igualmente inquestionável em seus propósitos, o religioso Charles Dogdson, mais conhecido como Lewis Carrol, decifrou a operação que sustenta o preconceito ao narrar o julgamento de Alice pela Rainha de Copas: primeiro a sentença, depois o julgamento. Geralmente é o que fazemos o tempo todo, primeiro julgamos (“cortem-lhe a cabeça”), depois convocamos o julgamento para justificar nossas ações. A ciência, o direito, a moral, a psicologia e até a religião são apenas álibis morais utilizados para diminuir as culpas. A diferença começa quando a ordem de cortar a cabeça (ou envenenar moradores de rua) deixa de ser metafórica e se torna real.
Ato e aceitação O que ocorreu em Belo Horizonte esta semana é grave demais para ser resolvido com uma simples avaliação dos programas de assistência social. Os moradores de rua não vão deixar as portas das casas de classe média porque os abrigos são confortáveis e a comida boa. Sua opção pela rua tem outras raízes e precisa ser compreendida de forma mais profunda. Independentemente disso, o incômodo causado não pode ser interpretado como uma falência do setor público de amparo, que daria aos cidadãos o direito de fazer “justiça” com as próprias mãos.
Chegamos ao mais fundo do fundo do poço. E o pior: na hora de dar conta de nossos defeitos de alma e sociedade, passamos a culpar a diferença em razão de seu potencial de incômodo. Os moradores de rua são o signo de nossa incompetência para dar conta da injustiça social. Acabar com eles não torna a sociedade mais justa nem mais humana. Nosso problema não são os abrigos, mas o que abrigamos em nós. O atentado aos moradores de rua, com seu simbolismo boçal em fazer da bebida a arma, é um dos mais tristes capítulos da história recente da cidade. Só não foi maior que o descaso que se seguiu.
Matar é ruim, aceitar o assassinato por razões de higiene social é ainda mais daninho. Podemos até ter certeza de que não participaremos da primeira operação, mas o risco de conviver pacificamente com a segunda parece nos rondar como um espectro. Quando isso acontecer, já teremos deixado de ser gente.
(*) João Paulo é autor da coluna Olhar e editor do Cardeno Pensar, publicado aos sábados no Jornal Estado de Minas.
Fonte: Caderno Pensar - Jornal Estado de Minas, Sábado, 21 de maio de 2011
Nenhum comentário:
Postar um comentário